julie azevedo
Since 86. Queer person. leitora & escritora. escuto música, bebo café e me preocupo demais com coisas que não deveria. Blog com quase 15 anos de história, onde as coisas acontecem devagar. arte: yelena bryksenkova

Existência Abandonada


Numa noite qualquer, sem lua, sem estrelas; fria, congelada se ouvia um choro distante, lá pelos vales. Choro de criança desamparada... Fui eu quem emprestou meu corpo a uma menina que tinha os olhos fundos e tristes; a boca seca e descolorida.
Perdida em pensamentos inalterados, num lamento constante de sofrimento. Desesperança era o que a dominava.
Sem poder olhar-se no espelho, sem poder falar qualquer palavra ao vento, ela escolheu renunciar a liberdade; viver acorrentada. Escolheu ser banida da realidade; se esconder para não olhar a felicidade dos outros.
Deitava a cabeça nas pedras e soluçava, sem dizer uma palavra, sem olhar para lugar algum.
Foi perdendo a capacidade de sentir. Quando as suas mãos sangravam não se espantava, tampouco sentia dor. Parece que foi caindo em um precipício sem volta. Caindo em desgraça, perdendo a vida.

Já não era hora de ser levada embora, deixar esse lugar que não era sua real existência? Mas a Morte observava, porque queria que a menina soubesse voltar por seus próprios caminhos; soubesse caminhar com seus próprios pés descalços.
Porém a menina que usava o meu corpo, de olhos fundos e boca descolorida, estava quase cega, quase sem vida. E a Morte confiava em uma força, que não era dela.
A menina foi ficando mais velha, mas não mais sábia. Pois naquele mundo não se aprendia nada, só se perdia o que estava guardado em sua mente.

Agora ela não via mais nada, não enxergava nem um fio de luz. Tateava no escuro, procurando onde sentar. E a Morte ao seu lado, esperando mais alguns dias pra que ela caísse em um último sono.
O corpo que eu emprestara a menina, não me servia mais. Eu já não podia usá-lo. Então fui para a espera de um novo corpo que eu pudesse ver refletido em algum espelho.
A Morte levou a velha, que um dia foi uma menina de olhos fundos e boca descolorida; que chorou pelo ar perto dos vales. 

Hoje ela caminha, olhando nos rostos de quem não tem quase vida, e leva quem pode estar sofrendo. Mas se ela achar que alguém merece viver, ela só acompanhara de perto e deixará esse alguém definhar aos poucos.

Comentários

  1. Nossa, maninha. Muito bonito, muito bem escrito. Foda mesmo. Parabéns =) amei ^^

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  2. Juli, muito legal o texto! Parabéns, continue a escrever ;)

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  3. Foi apenas minha muito fértil mente ou eu percebi uma conotação espírita nesse texto?
    Mas olha, isso faz sentido. Tanta gente por aí que vai e vai e vai e apenas segue, mas sem sentido... A Morte realmente espera - ela pode ser bem paciente.

    Lindo texto. Profundo, melancólico e interessante.
    Gostei.

    Beijo!

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  4. Texto muito bom, interessante e intrigante também.
    Fico imaginando em que tipo de berço ele nasceu — se foi numa tarde cinza, com alguma música de fundo e vários pensamentos navegando pelo cérebro. Ou se foi apenas um suspiro da alma em um dia meramente comum.

    De qualquer maneira, você escreve muito bem. Espero poder encontar mais textos como esse no Mundo de Morfeu.

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